Intercâmbio científico Brasil-Dinamarca
Lund fomenta diálogo institucional estimulado por suposta vinda de vikings ao país
Em carta à Real Sociedade, Lund , relatou a descoberta da primeira observação de pintura rupestre na América, retratada pelo desenhista Andreas Brandt
A aproximação entre as instituições científicas brasileira e dinamarquesa do início do século 19 é fruto da busca por provas da suposta chegada de vikings ao Brasil antes de 1500. Lund é parcialmente responsável por esse estreitamento de laços: ele era membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado no Rio de Janeiro em 1838, e da Sociedade Real dos Antiquários do Norte, criada em 1825 por Carl Christian Rafn.
Peter Lund e Peter Claussen foram admitidos no IHGB em 1839. Claussen foi freqüentador assíduo da associação; Lund contribuiu com volumosa correspondência acadêmica e remessa de materiais. Ele doou ao Instituto um exemplar de um livro de Rafn que narra a descoberta da América do Norte pelos dinamarqueses no século 10 e causou grande impacto sobre a intelectualidade brasileira.
Na troca de informações entre o Instituto e a Sociedade Real, destaca-se um texto traduzido por Lund. O documento descoberto na Livraria Pública da Corte, datado de 1754 e bastante danificado, descrevia uma cidade abandonada no interior da Bahia encontrada por aventureiros em busca de ouro. O povoado localizado em um planalto e protegido por uma muralha com inscrições indecifráveis teria a estátua de um homem apontando o Pólo Norte na praça central. À beira do rio, ouro e prata abundantes.
A revista do IHGB chegou a anunciar a descoberta da cidade -- que não veio a acontecer de fato. Lund traduziu e publicou nas revistas brasileira e dinamarquesa os relatórios da expedição frustrada. Em suas observações, acrescentou que era recomendável o estudo dos homens primitivos do Brasil por meio de seus vestígios mortais, já que o relato não era confiável.
Em 1844, Peter Lund formularia nas publicações de ambas as sociedades suas idéias sobre a origem do homem pré-histórico brasileiro. Ele aceitava a co-existência de animais extintos e homens, pois encontrara ossos de homens e animais misturados. Nada ficou provado, pois inundações são comuns nas grutas calcárias de Lagoa Santa. Para Lund, o povoamento da América do Sul seria muito antigo, já que "(...) várias espécies animais parecem ter desaparecido da criação viva até o tempo do aparecimento do homem aqui". Ele conclui que o homem fóssil americano pertenceria à mesma raça que o homem atual.
A conclusão era contrária à suposição de que o homem americano teria origem no Velho Continente. Segundo Lund, haveria um vínculo estreito entre a raça mongolóide e a dos indígenas americanos. Ele arriscava a hipótese de que essa raça seria originária das Américas e teria se espalhado para a Ásia (hoje, provou-se ter ocorrido justamente o inverso). Com isso, frustrava-se aos olhos de Lund a tentativa de se realizar uma história comum, que motivava os laços entre o Instituto Histórico e a Sociedade Real. A correspondência entre as duas instituições diminuiu e cessou em 1864, ocasião do falecimento de Carl Christian Rafn.
O 'homem de Lagoa Santa'
Descoberta de ossadas humanas pode ter levado Lund a abandonar a ciência
Crânio e mandíbula de um 'homem de Lagoa Santa'
Peter Lund era adepto da teoria catastrofista, segundo a qual desastres naturais teriam extinguido as sucessivas formas de vida. A teoria foi proposta pelo anatomista francês Georges Cuvier a partir do criacionismo e do atualismo geológico. O criacionismo atribuía a Deus a gênese de cada espécie e se opunha à teoria de Lamarck, para quem as espécies evoluíam lentamente em função do uso e desuso de características adquiridas. Já o princípio do atualismo geológico via nas diferenças entre fósseis de camadas geológicas distintas a prova de que teria havido sucessivas 'criações'.
Além de defender o catastrofismo, Lund era fixicista: acreditava não haver ligação entre as espécies. Negava, portanto, a evolução proposta por Lamarck e sistematizada posteriormente por Darwin. Ele já percebia, porém, semelhanças entre espécies fósseis e atuais. Escreveu, inclusive, um estudo comparativo sobre o assunto.
Os catastrofistas aceitavam a existência de um homem 'antediluviano' como um ser distinto do homem atual (para Cuvier, a última grande extinção seria fruto do dilúvio bíblico). Mas a noção de que esse homem existiu na América não era considerada à época. Apesar das idéias circulantes, Lund convenceu-se da antigüidade das ossadas humanas descobertas por ele em 21 de abril de 1843.
Esses ossos de cerca de trinta indivíduos estavam misturados a fósseis de animais, "todos depositados aproximadamente na mesma época", conforme relata Lund. A idéia de uma humanidade tão antiga a ponto de ter coexistido com a fauna extinta ainda não era considerada plausível.
As escavações de Lund apontavam para o evolucionismo e colocaram em xeque sua fé luterana e a teoria catastrofista de Cuvier
Do ponto de vista antropomórfico, os fósseis descobertos por Lund eram bastante distantes dos indígenas americanos e próximos dos negróides. Suas características físicas eram homogêneas, o que indica seu isolamento genético (ele não teria se misturado a grupos diferentes). Essa identidade configurou o perfil daquele que ficou conhecido como o 'homem de Lagoa Santa'.
Entre as ossadas de Lagoa Santa, somente as mais antigas -- datadas entre 11 e oito mil anos -- possuem características negróides; os fósseis a partir de oito mil anos já apresentam características mongolóides. O desaparecimento da raça negróide que habitou a região e seu relacionamento ou não com os mongolóides que vieram a seguir e dominaram o continente permanecem não esclarecidos.
Pouco depois da descoberta do homem de Lagoa Santa, Lund abandonaria suas pesquisas. Em carta à família, atribuiu a renúncia a problemas financeiros. Cástor Cartelle propõe outra justificativa. "Lund ficou um tanto desorientado com a existência do homem pré-diluviano e sincrônico da fauna recente e extinta. Acredito que o fato de comprovar que sua perspectiva catastrofista não tinha sustentação foi uma das causas que o impeliram a abandonar a vida científica." A extrema religiosidade também é considerada por alguns autores como motivo do precoce abandono da ciência.